Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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quarta-feira, janeiro 25, 2006

O bordel dos inúteis

“Sou escravo pelos meus vícios e livre pelos meus remorsos”
Jean Jacques Rousseau

O homem é escravo das suas paixões, sugeria Shakespeare e refém dos seus vícios. Vivemos reféns, numa jaula de ilusões, com pequenas janelas de ar puro, como o cinema. Fellini abriu uma janela em “Os inúteis”, a sua primeira grande obra. Numa pequena cidade de Itália cinco jovens amigos à deriva na boémia, feita de copos e mulheres, sem horizonte próximo, sem amor, sem escapatória.
Inesquecível a belíssima música de Nino Rota, que nos embala num filme de poesia crua e humana. Os “inúteis” são os excedentários de uma máquina de produzir expectativas e devorar sonhos. São os restos, as sobras.

Na minha terra há uma churrascaria. Vendia frangos assados e garrafas de tinto bera a camionistas e vendedores ambulantes. A A23 deu cabo do negócio e a churrascaria fechou. Agora é uma casa de putas, ou para sermos mais literários um lupanar; afinal os romanos também por aqui passaram e não deixaram só pontes para turista ver, ou ruínas para arqueólogo em início de carreira escarafunchar.
A churrascaria está na mesma. O balcão, as mesas, e até um pequeno altar sacrílego com a estátua da Virgem Maria, um poster do Sporting campeão (uma relíquia) e umas garrafas de VAT 69 do tempo da I República. A única coisa que mudou foi a mercadoria transaccionada. O negócio continua a ser da carne, antes eram frangos, agora são mulheres. Brasileiras desdentadas e já entradotas saracoteiam as mini-saias para embeiçar os velhotes de Mini na mão, Viagra no bolso e tractor estacionado à porta.

O Necas nasceu na aldeia. Menino do campo, filho de pastores, cresceu pastor. O pai deu-lhe a primeira ovelha quando ele fez 12 anos. Foi uma alegria, uma espécie de ritual de passagem de idade. Lembro-me quando ia com o Necas levar a Estrelinha a pastar. A infância passa a correr, e o Necas cresceu. Fez a quarta classe a custo e viveu ali na terra toda a vida. A única vez que saiu da aldeia, foi para fazer a tropa. Começou a fumar SG Ventil e a beber cerveja, como um homem, e continuou a pastar ovelhas e a viver na velha casa de granito dos pais.
Na minha terra não há raparigas, e as poucas que havia em idade casadoira, cedo partiram, ou foram fazer enxoval para outra freguesia. Sobraram os rapazes. Boa rapaziada, mas refém da terra estéril, do trabalho de assentar tijolo, dos biscates. Refém dos copos e das bebedeiras na taberna.
Os rapazes da minha terra cresceram sem amor, sem aquelas aventuras juvenis da paixão, do namorico, e da descoberta do sexo. Quando iam às festas nas outras terras, à procura do namorico, enjorminavam-se de tal forma que espantavam qualquer candidata.
Agora as festas de aldeia são chochas e eles passaram de miúdos a homens rudes de mãos estragadas pelo cimento; mãos que nunca acariciaram o corpo de uma mulher que lhes retribuísse o amor.
Agora, nesta nossa Cova à beira da morte é tarde para “inúteis” da minha terra. O álcool e o bordel são a única janela que podem abriu da jaula.
O Necas, meu amigo, tal como Constantino, pastor dos sonhos da nossa infância, cresceu sem amor. É agora homem feito e abriu a janela. Todos os tostões que ganha de trolha e de pastoreio torra-os no bordel. Tem um corpo esquálido e definhado do álcool e nos olhos varejados de sangue um brilho triste, melancólico e vingativo.
Um filho extremoso e dedicado que se transformou num monstro egoísta. Trata mal os pais, é irascível, preguiçoso, fica até tarde a cozer as bebedeiras e vai estourando o parco pé-de-meia de uma vida.
Como Nicolas Cage do filme “Viver e Morrer em Las Vegas”, o Necas vai-se suicidando lentamente. Trocou as Minis pelo venenoso whisky, e a timidez sexual pelo prazer a pagantes. Vinga-se de uma vida que lhe recusou o amor e os sonhos. Um dia vão encontrar o Necas, caído numa valeta como um cão cansado de tentar escapar do açaime.
Para fugir da jaula, o Necas ficou refém do bordel.

Na SIC-Notícias, passou no outro dia um impressionante documentário sobre “escravatura sexual”. Uma viagem aos tenebrosos meandros da mega-indústria do sexo que mostrava como a pobreza e a miséria da Ucrânia e da Moldávia servem de “pasto”, para aves de rapina do proxenetismo organizado abastecerem os mercados internacionais da prostituição. Mulheres que são iludidas com promessas de uma vida melhor e com empregos honestos no estrangeiro, e que chegadas ao seu miserável destino, são vendidas, ficam sem passaportes e sem identidade, são violadas, e se tornam mercadorias para satisfação de clientes.
Quantas escravas sexuais há a trabalhar nos bordéis portugueses, que se espalham como cogumelos pela província? Quantas mulheres são obrigadas a fingir dar amor ao Necas, e aos milhares de homens que nos bordéis encontram a janela aberta da jaula? Quantas mulheres são submetidas a maus-tratos para enriquecer os canalhas dos “industriais da noite”?

De toda a mixórdia de boçalidades que foram proferidas pelos putativos candidatos à Presidência da República, uma mereceria decerto outra atenção, que não o repimpar de lérias em prime-time, e uma ou outra estocada sobre a moral e dos bons costumes.
Honra seja feita a Mário Soares que disse abertamente ser a favor da legalização da prostituição em Portugal.
É tempo de acabar com a velha cultura burguesa das “públicas virtudes, vícios privados”, que lançou Portugal neste ambiente dissoluto, desprovido de valores, egoísta e trafulha. Basta de moralismos sacanas!
O licenciamento público de bordéis estaria a autorizar a venda de sexo como actividade comercial. Pois bem, e daí? As feministas bem podem queimar soutiens e os padrecos brandir excomunhão, porque o importante são as pessoas. Não como elas deviam ser, mas como elas são.
Como actividade regulada, vigiada, e tributada a prostituição deixaria de ser o inferno humano que é. Segurança física, financeira, higiénica e psicológica para as prostitutas, em estabelecimentos licenciados com regras sanitárias e laborais muito rígidas.
Como actividade organizada a prostituição afastaria os criminosos, os lucros milionários frutos da exploração, e permitiria que através da tributação fiscal fossem criados meios de apoio e reinserção social.
Com a liberalização da prostituição, as prostitutas deixariam de ser tratadas como mercadoria, e tanto elas como os clientes ficariam mais protegidos desses parasitas que vivem nas fímbrias de uma sociedade moralista.
É pena que em Portugal, os políticos passem tanto tempo a falarem de coisa nenhuma, e se ocupem tão pouco tempo das pessoas e dos seus problemas. Porque as prostitutas e os Necas deste país também são gente!

sexta-feira, novembro 25, 2005

E agora Velha Europa?

“Ás vezes, em França, os proprietários de pequenas moradias possuem cães tão grandes como vacas. E para defender o quê? Uma mesa de cozinha com toalhas aos quadrados, uma cama para duas pessoas com uma colcha de croché, um relógio do avô e uma televisão a cores.”
Rudolf Bakker


A geração que fez o Maio de 68, e que barricou Malraux e a Sorbonne e derrubou De Gaulle, a geração que quis mudar o mundo com cocktails molotov, acordou há dez dias no seu pior pesadelo. A profecia de Marcel Joohandeau em 6 de Maio de 1968 cumpriu-se com um rigor que faria Nostradamus corar de inveja – “Voltem para vossas casas! Daqui a dez anos, todos vocês serão notários…”.
Nem todos são notários, há até alguns que são deputados europeus, mas quase todos eles se transformaram naquilo que há quase 40 anos combateram nas ruas de Paris – em burgueses refastelados e conformistas.
A notários não chegarão certamente os milhares de jovens que estão envolvidos nos piores motins urbanos de que há memória na Europa nos últimos anos, repetindo o que aconteceu em Los Angeles há uma década, depois de uns gorilas da LAPD terem espancado um jovem negro.
As grandes cidades europeias, símbolos de um certo cosmopolitismo multiétnico, são hoje um autêntico barril de pólvora; basta dar fogo ao rastilho, para a revolta se propagar por todas as “bidonville” e guetos suburbanos da Europa, como aliás já aconteceu na Alemanha.
Previsivelmente, este fenómeno vai despoletar um acalorado debate sociológico e ideológico, em que a Velha Europa gosta de rebolar, sempre que a sua miopia e inércia é sacudida, e quando os seus orgulhosos valores universais são vítimas das insanáveis contradições de que enferma uma certa ideia de que a Velha Europa faz dela própria, como aquelas senhoras excessivamente maquilhadas e dadas as liposucções, mas sem solução para a decrepitude.
Mais do que os milhares de carros incendiados em Paris, o perigo está no aproveitamento que for feito dos escombros dos motins. Devemos todos preocupar-nos com o rescaldo político desta Intifada urbana. Os grandes vencedores das batalhas-molotov de Paris e Toulouse não são os Ahmeds e Hassans, franceses, filhos de emigrantes, que vivem na lógica criminosa de bairros degradados e veneram Alá, com a mesma facilidade que se submetem aos cânones do rap guerreiro americano, numa busca de identidade transterritorial, que é também a matéria-prima e o húmus do terrorismo muçulmano.
Os grandes vencedores serão os extremismos, que vivem como parasitas destas inquietações, que se alimentam do medo e da intolerância, cada um com o seu hábil harpejar de conveniências. Quem ganha antena e megafone são os Le Pen`s e as Dianas Andringas (salvo a devida escala) desta Europa. O debate será entre a política do cacetete e da contextualização, formas ambíguas de iludir esta séria ameaça à paz social da Europa.
Cada uma destas correntes de pensamento extremista dará a sua interpretação dos motins de Paris, e ambas darão respostas e soluções, apenas viáveis no domínio das utopias sociais, que estiveram na base dos mais graves conflitos de que a Europa foi palco no século XX.
Le Pen, credenciado xenófobo e racista dirá que a culpa é da imigração, dos terroristas que são acolhidos pela França, abrigados sob o santuário da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e que roubam os empregos aos franceses de gema, pegam-lhes fogos aos Renault, e querem tornar a França numa república muçulmana e obrigar as colecções da Chanell a incorporar o véu muçulmano. A solução está no autoritarismo, na repressão, no fecho de fronteiras, porque só assim a França recuperará a sua grandeza e os franceses os seus empregos. Isto é, como se sabe, música para os ouvidos de muito boa gente, sobretudo a mais pobre e que vive com maiores dificuldades, que vê num magrebino um rufia ou um mártir da Al-Qaeda.
Do outro lado, a esquerda bem pensante dirá, com a generosidade que só a ignorância autoriza, que o fenómeno é causado pela falta de integração social, pela discriminação, e por uma cultura de planeamento urbano que favorece a concentração em guetos de comunidades étnicas, que são afastadas como excrementos de uma sociedade egoísta e preconceituosa. Para esta esquerda, que nunca andou num bairro tramado depois das sete da tarde, ou num comboio da linha de Sintra, os Ahmeds e os Hussein, coitados, são produtos de um modelo esclavagista e racista. Eles não são beras, só ficaram beras porque o capitalismo selvagem e a sociedade os obrigaram.
Está visto que não há maneira de enterrarmos o bom selvagem do Rousseau, até ao dia em que o bom selvagem, inimputável por definição, nos enfiar uma navalhada no estômago.
Para esta esquerda luminosa, a solução está no franqueamento das fronteiras, na demolição dos bairros degradados, e na construção de vivendas com sardinheiras no jardim para estas pobres vítimas do infortúnio, cujas grandes ambições são ter uns ténis Nike e um telemóvel 3G. Como se vê, é tão fácil como isto alinhar no discurso preconceituoso e estereotipado.
O que está em causa com os motins de Paris, transcende em muito a criminalidade vulgar, pelo que não basta a urgente reposição da ordem pública, com meios adequados, e proporcionais à violência enfrentada (sim, o cacetete também é legítimo para impôr a autoridade de um Estado democrático). É preciso que a União Europeia e os Estados Membros coloquem no topo da sua agenda temas como a imigração, o futuro das cidades, a integração e tolerância social.
Entre as barricadas de Paris e o vergonhoso tratamento dado pelas autoridades espanholas aos refugiados e imigrantes em Ceuta a distância é demasiado curta, e o tempo demasiado escasso. A Europa envelhece e precisa de imigração, como de pão para a boca, mas não apenas para ter “escravos” a preço de saldo a trabalhar nas obras para prover as nossas pensões e para o sustento do falido modelo social europeu, mas para receber todos aqueles que queiram melhorar as suas condições de vida e participar num projecto colectivo de bem comum, onde a liberdade, igualdade, fraternidade não sejam palavras vácuas para usar nos discursos pomposamente fúnebres do Palácio Eliseu.
A França e os franceses estão a pagar bem caro essa falácia de sociedade aberta, que oculta um chauvinismo e racismo ultramontano, ou uma tolerância burguesa e meramente intelectual (como a da geração de Maio de 68).
A França paga o preço de ter aceite os imigrantes para reconstruir um país e assentar tijolos, mas raramente ter aceite os imigrantes e os seus filhos para notários (como tantos compatriotas nossos o amargamente sabem).
Como diria Jean Cocteau “A França é um galo em cima de uma estrumeira. Tirem a estrumeira e o galo morre”. A França paga hoje o preço da sua autista soberba.
Outros se seguirão.

Requiem por um cão de quinta

“(…)Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro dos velhos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
Também o amor chegara a casa.”

Eugénio de Andrade, “Memória dos Dias”


Em pleno vapor da panela de pressão autárquica e espasmos corporativos de toga e farda de três em pipa, parece-me prudente e de bom gosto tergiversar sobre cães.
Deixemos a toga, por ora, na paz surda das suas regalias de casta, e a farda em desfile “fashion”na caserna de Zé Castelo Branco. Deixemos Felgueiras aos seus trauliteiros, Oeiras aos seus embusteiros, e o resto deste país entregue, como sempre, a uma respeitável súcia de filibusteiros.
Falemos de cães, daqueles que ladram indiferentes à chinfrineira da caravana autárquica. “Uivemos, irmãos!”.

O Leão morreu. O último príncipe plebeu da dinastia de cães de quinta dos meus avós morreu novo, desapareceu envolto em bruma de D. Sebastião de cauda a abanar, e abalou lá para o seu nefando Al-Quibir.
Leão chegou cachorro e foi recebido como príncipe que era; coroado de mimos, festas e cabriolices, perante o ar desaprovador do meu avô: – Dão-me cabo do cão se o rebentam com mimos, ainda fica podengo manso!
Pois sim, cão de quinta não é para ser apaparicado como lulu burguesote de pêlo enrolado e tratado. Cão de quinta, malgrado o porte, é para ser cão bravio, domado à voz do dono. É para carregar carraça, eriçar pêlo e arreganhar incisivo a forasteiro mais afoito a meter o pé em ramo verde.
Cão de quinta é guarda fardado, não é dama de companhia para as festarolas de “madames ao buffet”.
O meu avô, sempre severo com animais, nunca dá aos seus cães a confiança de uma festa; aprecia-lhes o trotear camarada e a lealdade quando vai para a horta, mas não lhes autoriza a cúfia e o abuso, que são banidas a enxoto em ameaça de butes. Apesar de o temer, Leão dedicava-lhe uma estima discreta e fiel, reservando as brincadeiras e a pândega para nós, e para a minha avó a paixão rejubilante.
A minha avó era quem lhe dava comida, mas também quem o tratava com aquela familiaridade íntima que os cães adoram, porque os faz pertencer a um mundo de afectos.
Na quinta isolada da Gardunha a minha avó queixa-se muitas vezes: – Passam-se dias que não vejo ninguém, só falo com o teu avô e com o cão!
E era mesmo. Ralhava com ele, fazia-lhe festas com palavras doces como as que dá aos netos. Era digno de se ver as suas procissões organizadas caminho acima para desentorpecer as pernas, apanhar ar e alargar horizontes para lá dos muros da quinta.
A Dona Piedade à frente, seguida de Sua Eminência Cardeal Leão, bamboleando a sua importância à frente do triunvirato de gatos vadios, que foram acolhidos pela Rainha daquela quinta-castelo do bom coração.

É certo que o presságio do meu avô se confirmou, porque o Leão acabou por se fazer pacholas, um Gandhi canino de língua à banda, incapaz de se pegar com os gatos-refugiados ou rosnar a qualquer forasteiro em visita a desoras.
Foi de todos os cães da quinta, o primeiro que nunca vi rosnar, nem ladrar zangado, nem eriçar o pêlo.
Com o amor e as festas ficou demasiado parecido com a minha Avó Piedade, demasiado bom cão, para ser cão bera. O meu avô perdoou-lhe a incompetência de guarda-nocturno com a recriminação: – O cão não dá sentido, nem sinal nenhum – como se fora cão-alarme – mas é bom cão, sim senhor!
Sentença lavrada, viveu o Leão uma vida curta, mas boa para cão de quinta. Comia o que lhe davam para comer, gulodices à fartazana em dias de festa e de sobras da família reunida, e minguava quando a ementa era um simples arrozinho ou sopas de leite, que já se sabe, os velhotes contentam-se com pouco.

Na sua vida curta pode não ter sido feroz cão de guarda, mas foi pelo seu carácter e generosidade, um excelente cão de companhia. Só os meus avós, e tantos avós como eles, isolados no frio da velhice, esquecidos nos Invernos de lareira nunca extinta, só eles sabem apreciar um cão de companhia afectuoso.
Salteadores de caminho e ladrões de fruta ainda os há, mas debandam as cidades, e movem-se nos corredores acolchoados do poder, por isso, e cada vez mais, os cães de quinta perderam a sua valência securitária e passaram a ter um papel humanitário.
São eles que substituem os filhos e os netos no coração dos velhos entre as Páscoas, os Natais e as festas da Nossa Senhora da Misericórdia. São eles que fazem os velhos sentirem-se vivos, nas suas preocupações, cuidados e ralhetes.
Ter animais para tratar é o melhor lenitivo para a solidão ressentida da velhice. Os cães de quinta parecem sabê-lo, e retribuem o trato com dedicação e uma psicologia por vezes interesseira do osso mais nutrido, mas sempre “humana”, de quem defende e ama “o próximo”.
- Já andava xoxito, era malina de certeza, andou lá por fora dois dias, e uma vez à tardinha apareceu-me aí com uns olhos tão tristes que até me doeu o coração, abeirou-se de mim, encostou a cabeça para uma festa, e depois meteu leirão abaixo. Veio fazer as despedidas antes de ir morrer longe.
-Contou-me a minha avó, sem conseguir conter uma lágrima furtiva. -Andei uns dias que até sonhei com o cão – confessou.

E ali ficamos no terreiro, debaixo das latadas de Setembro, a recordar os cães da quinta, desde a Bolinhas, que dava conta assim que assomávamos ao cimo do caminho; ou do Tarzan, o pastor alemão que veio já canzarrão, e que de manhã me ia abocanhar a mão à cama para irmos brincar para a ribeira; ou do Pirata, o cão vesgo de lutar com um lobo, raçudo e pequenote, estava sempre pronto para uma boa bulha (era o preferido do meu avô); ou a Coimbra, mãe-parideira que uma vez foi salvar a minha prima ainda criança de ir para a estrada.
Ali ficámos à sombra amena de Setembro a recordar os cães que cresceram connosco e que ganharam o espaço nas memórias felizes da família, os cães de guarda que sempre guardaram os meus avós da solidão.
Lá dentro na televisão, uma grande ladroada num debate de candidatos às eleições autárquicas, e nós cá fora, confortados nas saudades boas dos tempos que já não voltam.
Dou comigo a pensar que para os meus avós é muito mais importante o futuro cão da quinta do que o futuro presidente da câmara municipal. Olho para a televisão e acho que quanto mais conheço os homens, mais gosto de cães.

Sebastianismo, esse cadáver adiado

“O inconsciente dos portugueses recomeçou a carregar-se e electrizar-se com aquela loucura nacional (o sebastianismo), sem a qual, ai!, sem a qual – os portugueses são cadáveres adiados; sim são adiados… espanhóis!”
Vicente Sanches in “Promissão do Quinto Império”


Tragam-me um purgante, um laxante, um comprimido para o enjoo, ou o raio que o parta. Os próximos tempos vão ser aziagos, azientos, e propensos à doudice.
Vai ser um arrotanço de postas de pescada de alto lá com ele.
Portugal quer acertar contas com o passado, mas seria preciso recuar até Afonso Henriques para tirar meças à espada do “Fundador”, que reza a lenda seria um espadalhão de estoura-vergas, como o seu manuseador.
Como na forja da Lusitânia já não há centelha de génio nem serracenos para traulitar, resta-nos saldar contas com o nosso infausto passado recente.
As próximas eleições presidenciais são por isso um exercício freudiano, uma sugestão de hipnose para expiação dos traumas do passado, que nos permita resolver as aflições da vida presente e futura. Trata-se de um regresso a Édipo e a Electra, através dos “mitos” da política à portuguesa que melhor se identificam com a imagem do Pai – austero, crispado e castigador Cavaco; e da Mãe – Cordial, intuitivo e condescendente Soares.
Desenganem-se os sofisticados analistas, porque o fenómeno em causa é do fórum da psicanálise e da sandice endémica, e nada tem a ver com uma visão para o futuro do país, uma leitura do mundo em que vivemos, ou sequer um rumo para o nosso taralhoco devir colectivo. Trata-se de mais um ataque de sebastianismo, a doença crónica do espírito luso, que recrudesce em momentos de estertor de Portugal.
Só quem se renda a “delirius tremens” próprios do consumo exagerado de editoriais do “Expresso”, de patacoadas do “Prós e Contras”, ou de doses maciças de Brandy Mel, pode acreditar que estas eleições presidenciais são decisivas para o futuro.
Com todo o penhorado respeito que me merecem os néscios, não entendo como é que esta vaga de saudosismo místico pode trazer alívio para um enfermo cada vez mais carecido da beatitude apaziguadora da extrema unção.
Julgo natural ter saudades das coisas boas do passado -, como dos golos do Eusébio, das férias em Castelo Novo, do primeiro álbum dos Pixies, da primeira namorada, dos episódios do Dartacão, ou dos antigos camaradas dos copos.
Agora ter saudades do Cavaco e do Soares?! Tenham dó!


Portugal parece cada vez mais um bando de beatas à palheta no adro da igreja: “Os jovens de agora são uma pouca vergonha, no nosso tempo é que era”, sentenciam.
Esta é a grande clivagem geracional que vai emergindo e não se reduz a um boletim clínico sobre as aptidões físicas e intelectuais dos candidatos a Papandreou à portuguesa.
Perdoem-me a franqueza, mas uma sociedade que acredita que os seus velhos são o futuro, está a ficar xexé, decrépita, e irremediavelmente acorrentada a um passado que de glorioso apenas tem uma memória distorcida.
Na “Visão” Fernando Dacosta desfazia-se num choradinho sobre a forma como muitos dos homens bons da sua geração foram sendo arrumados na prateleira do esquecimento, e triturados por uma “nouvelle vague” de tecnocratas ambiciosos e sem escrúpulos que levaram este país ao estado miserável em que está.
Não discuto essas injustiças, mas para Dacosta e uma certa esquerda desencantada e ressabiada, a candidatura de Soares parece perfilar-se como uma “vendetta” da brigada do reumático contra os jovens turcos, cuja ambição fez perder Portugal - uma geração que, coincidência das coincidências, foi forjada sob o estigma do “sucesso” e da miragem do oásis cavaquista. Essas pieguices dacostianas caucionam a desresponsabilização colectiva, como se não tivéssemos todos culpas neste cartório da esperança frustrada.

Julgo mesmo que a única discussão relevante que poderia brotar destas eleições seria o papel da renovação das elites políticas e intelectuais na dinâmica e inovação das sociedades.
Essa discussão não vai acontecer por causa da bizantina regra da educação que nos instiga a ter respeito pelos mais velhos. Ora estou cheio de vontadinha de perder o respeito pelos mais velhos. Foram eles que nos serviram a liberdade e a democracia, que recebemos com a gratidão que se deve ter para todas as dádivas.
Mas c`um caneco, já lá vão 30 anos, e há certamente melhores formas de preservar e honrar a memória, do que conservar a memória no fermol do poder.
E quando falo no poder, não é apenas na Presidência da República. É também na administração pública, nas empresas do Estado e em muitas carreiras no sector privado em que a antiguidade é sinónimo de competência.
Os partidos políticos são apenas reflexo dessa falácia, utilizando os mais jovens, como o fenómeno Tino ou os milhões jotinhas como aberrações de feira, para mostrar que se estão a renovar e a meter sangue novo nas veias esclerosadas das organizações de poder.
É por isso que a pieguice de Dacosta é apenas ilusionismo fatela. O problema é exactamente ao contrário: Portugal é um país de velhos, governado por velhos, em que a alegada experiência, sabedoria e visão “estratégica” são glorificadas; em detrimento da inovação, da criatividade e do risco.
Somos um país conservador porque nos tornamos neste condomínio fechado de comparsas e clientelas, que desconfia dos “jovens turcos” porque vê neles uma ameaça ao seu poder quase vitalício e ao escudo de regalias que foi ardilosamente construindo ao longo dos anos.
Caminhamos para a gerontocracia caquética, e nem sequer nos damos ao respeito de saber cuidar dos nossos velhos; os outros, os sem-poder e sem-sobremesa (como dizia Ruy Belo); os velhos esquecidos e amontoados em filas de espera da morte, abandonados em lares escôncios e miseráveis.
Se não fosse indecoroso era cómico.

É por isso que optar entre Mário Soares e Cavaco Silva, é escolher um chão que já deu uvas. Eles são obviamente referências da nossa jovem democracia, mais pelas coisas que não fizeram, do que pelo que fizeram em matéria de governação.
E não consta que tenham feito um país moderno, civilizado, humano, eticamente responsável e economicamente sustentável. Falharam em todas as frentes e foram eles os primeiros coveiros; os que se seguiram apenas acrescentaram as pázadas com que se vai enterrando o defunto.
Endeusar Cavaco e Soares é por crendice de quem ainda não meteu no bestunto que este modelo de país deu o badagaio, faliu, implodiu, finou-se!
As próximas presidenciais são assim uma funesta adaptação da “Birra do Morto” de Vicente Sanches. Convém que um dia destes alguém informe o país que está morto, que se passe uma certidão de óbito, e que se continue com a vidinha, construindo um novo, que para viver há sempre tempo. Há uma geração que falhou Portugal e a já estamos fartos de ser cadáver adiado e cada vez mais adiados espanhóis…

Muito circo e pouco pão

“Os pobres são tão infelizes que, quando estiver na moda cagar dinheiro, pois bem, terão prisão de ventre”
Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos

Um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza. Basta imaginar que na fila para a caixa do supermercado, uma das pessoas que está à sua frente pode não ter dinheiro para o cabaz mínimo de sobrevivência: pãozinho, leite e ovos. Mas vá lá, isto é meramente estatístico, não é real. Não precisa de acordar a sua consciência ensonada só por levar no cabaz um patêzinho de estalo e um Murganheira meio bruto.
Aliás, se calhar está como eu, e nem sequer sabia que havia um Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Sabia certamente que há 364 dias internacionais para esquecimento da pobreza, e apenas um em que nos lembramos que há pobrezinhos no mundo, e que esse dia é lá para os fins de Dezembro, em que também se canta a missa do galo.
Um Dia Internacional serve mais para expiar a má consciência e o egoísmo colectivo do que para alertar e despertar. Dizer que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza não vende jornais, aliás um em cada cinco potenciais compradores do jornal nem sequer tem dinheiro para um papo-seco com margarina, quanto mais para ler as indigestas colunas de Vasco Pulido Valente!

Numa terra onde a inveja sempre prosperou, é difícil vender inveja embrulhada com a pobreza.
É por isso que os mais avisados pegaram no tema ao contrário, na lógica marxista de “quantos pobres é preciso para produzir um rico?”
Sei que esta interrogação exaspera os sacerdotes do capitalismo untuoso, mas a verdade é que há resposta:
– As 100 maiores fortunas significam 17 por cento do PIB, e 20 por cento dos portugueses mais ricos possuem 45,9 por cento do rendimento nacional.
Não alimento nenhum ódio jacobino em relação aos ricos, mas julgo da mais elementar prudência desconfiar da capacidade de Portugal parir tantos ricos e tão pouca riqueza. Também me cheira a esturro sermos o país da UE com o maior fosso entre ricos e pobres, o que significa que a classe média é hoje uma espécie quase tão extinta como o Tigre da Malcata.
É por isso que quando vejo na televisão aquele furúnculo iracundo que é o vozeirão dos patrões, um tal de Ludgero Marques, recordo sempre a citação de Roland Jaccard no “Dicionário do perfeito cínico”:
“Um pobre tipo esfomeado implora ao Barão de Rotschild:
- Senhor barão, há três dias que não como nada!
- Pois bem – responde o Barão – é preciso que alguém o obrigue!”

Com excepção do corajoso “Público”, que por contraste publicava também a sua revista de economia cor-de-rosa “D” (de dinheiro, o tal que falta a um em cada cinco); ninguém ligou patavina ao “insólito” da pobreza ser uma epidemia em propagação mais exponencial do que a gripe das aves.
Olhos que não lêem, coração que não sente, e provavelmente, muitos dos leitores do “Público” terão passado pelo dossier sobre a pobreza como cão por vinha vindimada, preferindo o “glamour” da página 41, com a reportagem sobre essa efervescente prova de cosmopolitismo lusitano - a Moda Lisboa.
Uma autêntica feira de vaidades fátuas e onanismo de alta costura, que este ano revelou mais outros segredos de Fátima (a Lopes, do biquini de diamantes), e anunciou que afinal “Ana Salazar também sabe criar roupa light”, notícia recebida com indiferença pela população sem-abrigo de Lisboa (cidade que patrocina generosamente a Moda Lisboa).
População essa, que segundo o estudo citado pelo “Público”, cresceu 25 por cento nos últimos cinco anos.
Não será certamente a roupa “light” de Ana Salazar a dar agasalho aos milhares de vagabundos do nosso país.
E também não será o milhão e meio de contos que a Santa Casa da Misericórdia vai dar ao Rali Lisboa/Dakar que trará consolo, sopa e apoio social aos velhos abandonados nas aldeias do nosso país.
Percebo agora a pressa socialista na remoção de Maria José Nogueira Pinto da Santa Casa; aliás, a sua remoção da gestão dos Euromilhões – O Governo português precisava de arranjar um “truque” contabilístico para patrocinar a operação de João Lagos, e nada melhor do que uma dócil gestão na Santa Casa, para “orientar” este Santo Patrocínio do Euromilhões.
Num tempo em tanto se fala da falência do modelo social europeu, e da falta de recursos para o sustentar, como é possível sustentar esta bancarrota moral e cívica?
Como é possível só agora descobrir a negociata dos preços combinados dos medicamentos para diabéticos e do pão sujo fabricado por padeiros-capitalistas?
Num país de pobres até o pão é corrupto! Querem melhor metáfora para esta falência imunda?

Neste regresso à choldra, o que dizer do facto do pertinente estudo sobre a pobreza levado a cabo pela Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS) se ter mantido no anonimato circunspecto dos gabinetes. Percebe-se esta cumplicidade do silêncio, porque a pobreza é tema pestilento, é lepra que convém manter “longe da vista”.
De acordo com o estudo apócrifo, que incidiu sobre as freguesias, a unidade mínima e mais real de diagnóstico dos problemas do quotidiano, os portugueses identificam “desemprego, dependências e pobreza como os maiores problemas das suas freguesias”, e que “à medida que se caminha para o interior do país, há mais pobreza, mais analfabetismo, mais solidão de idosos”.
Estas são de La Palisse, pensará o indómito e liberal Luís Delgado que pulula dentro de cada aspirante a “yuppie”, para quem o combate à pobreza se faz rezingando uma moeda ao arrumador; ou à moda antiga, como as tias da Covilhã de Alçada Baptista (não perder a nova peça do GIC), mantendo nas fímbrias da caridade cristã uma horda de pobrezinhos.
Mas, além do diagnóstico da pobreza (que encobre a fome), este estudo revela que a maior parte das instituições locais de solidariedade social apenas prestam serviços “garantidamente” financiados pelo Estado, quer pela sua facilidade burocrática, quer pela sua simplicidade operacional. Assim, na modinha do subsídio-dependência, as Actividades dos Tempos Livres (ATL) e as creches são tão populares, como as rotundas e as piscinas o são para qualquer autarca-espertalhaço na homília da reeleição.
A rede de apoio social falha em toda a linha, precisamente porque não trabalha numa lógica de proximidade e de inovação. É preguiçosa, burocrática e míope, e sabemos que de nada serve deitar dinheiro para os problemas, porque o mais certo é ficar sem o dinheiro e conservar os problemas.
Os senhores autarcas que agora foram eleitos deviam começar a preocupar-se menos com as obras visíveis e meter as mãos nesse incómodo e ultrajante flagelo que é a pobreza escondida nas suas terras.
É também para isso que foram eleitos. É para isso que lhes pagamos, não só para fazerem as obras visíveis, mas também as invisíveis, as que não rendem votos, nem inaugurações mediáticas, nem maiorias albanesas.
A pobreza não pode ser mais o pó varrido para debaixo do tapete em dia de visitas.

Um fogo que arde sem se ver

"Em Portugal os incêndios não são uma fatalidade, o mau Governo é que é!"

Se La Fontaine decidisse escrever umas fábulas sobre Portugal, encontraria decerto farta matéria neste fumeiro à beira-mar plantado no ano de 2005 do Senhor. O país das baratas tontas seria uma hipótese académica que ganharia corpo, com a forma atabalhoada, desesperada e trágica como enfrentamos mais uma vaga de incêndios.
Tudo a correr de um lado para o outro, aos gritos de acuda! acuda! acuda! e as chamas de orelhas moucas a devorarem o manjar que a incúria e o desleixo dos homens lhe estendeu. “O fogo é ladrão e nós abrimos-lhe a porta”, dizia com propriedade na semana passada o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses ao JF.
Ora, um país tão pródigo em provérbios e dixotes teima em não levar à letra o prudente conselho “Casa roubada, trancas à porta”. O flagelo dos incêndios em Portugal não é uma catástrofe natural, porque não é consequência da imprevisível da fúria dos elementos, nem da força destruidora da mãe-natureza.
Este flagelo é de natureza previsível, é tão sazonal como a época balnear, e por isso escusam os senhores ministros virem aí com a ladainha da “fatalidade”. A única coisa fatal nos incêndios em Portugal é a impotência de um país e do seu Governo em os prevenirem, anteciparem, vigiarem, alertarem e extinguirem. Os incêndios não são uma fatalidade, o mau Governo é que é.
Dizem os apaziguadores que em tempo de combate e tragédia não é coisa bonita distribuir culpas. A culpa por cá fica para tia. Mas é flagrante que a culpa desta tragédia anual é de todos os Governos, das autoridades competentes e também das próprias populações; rigorosamente por esta ordem.
Quando o ministro António Costa encolhe os ombros, afirmando que este Governo não teve tempo para prever a calamidade, está a prestar-se à farsa farsolas. Ora, contas rápidas, este Governo foi eleito há cinco meses, que me parece tempo suficiente para preparar um plano de emergência e ter uma estratégia proactiva e não reactiva, como é de timbre nacional.
Num ano de seca extrema, não era preciso ser nenhum Nostradamus para “prever” o futuro negro. Não acredito que o Governo não soubesse o que ia acontecer, tinha era, como sempre, outras prioridades (como mudar a administração da Caixa Geral de Depósitos e a da Galp).
O Governo sabia que isto ia acontecer, mas também sabia que a teoria da fatalidade e o pouco tempo de exercício executivo lhe permitiriam passar, senão incólumes, pelo menos apenas chamuscados pelos fogos.

Se algum especialista em análise de conteúdos passasse em revista a comunicação social nacional na época idiota (que em Portugal é mais ou menos do dia 1 de Janeiro até ao dia 31 de Dezembro), depressa identificaria as palavras lavrar, incontrolável e ponta-de-lança (o tal do Benfica) como as mais largamente utilizadas pelos camaradas jornaleiros no período estival.
D. Dinis, “O Lavrador” ficaria arrepiado por ver o caminho que levava o seu cognome, e junto com ele o pinhal de Leiria. Por cá o arado está estacionado na loja junto com as outras alfaias agrícolas. Por cá, o mais que se lavra são autos e chamas. E agora agitam-se as consciências funestas, os analistas-incendiários e os especialistas, prontos para fazer o enésimo diagnóstico e a tretatésima terapia. Vai ser lume brando de pouca dura, porque o grande problema dos fogos, e de tudo o resto neste país, é que a memória é mais curta que um fósforo. Lá para Setembro, quando as chamas se extinguirem, o país escaldado entra em rescaldo, e os incêndios passam apenas a ser uma memória defunta e esquecida.
Os grandes problemas em Portugal são uma fatalidade, e não fazem parte das grandes prioridades do Estado e dos seus cidadãos. Os incêndios, a sinistralidade rodoviária, a pobreza, e a selvajaria no planeamento do território, que leva à desertificação do interior e de áreas florestais, ou seja ao seu abandono à vontade do fogo; são isso mesmo, fatalidades, para as quais as baratas tontas não têm remédio possível, e que vão ardendo todo ano, como fogo que arde sem se ver.
Para o nosso consolo de cidadania passiva, resta compadecermo-nos com a desgraça alheia e com a voracidade do monstro incendiário, que juntamente com o monstro do défice e o da corrupção, são os dragões que nenhum providencial São Pedro consegue degolar.
É por isso, que muitos daqueles que se apiedam com as desgraças das pessoas que perderam tudo hoje, nem sequer espreitam para o seu quintal, para ver se está limpinho e com uma cintura de segurança para evitar o pior.
É bom lembrar, que o fogo é ladrão que a qualquer momento nos bate à porta. É para não apagar estas chamas assassinas da memória, que também tenciono comprar a pulseirinha de solidariedade que a associação “Pinus Verde” vai lançar para apoiar as vítimas dos incêndios na zona do Pinhal.
Sob o lema “Pulsar verde”, para que a nossa consciência não se extinga mais facilmente do que as labaredas deste Verão.

Trabalho fingido

“Não quero ganhar a minha vida, já a tenho.”
Boris Vian


Um estudo recente de uma daquelas organizações internacionais com nomes pomposos publicado na revista “Visão”, mostrava que afinal em Portugal se trabalham mais horas do que a média europeia. No “ranking” dos escravos do relógio de ponto só somos batidos por alguns povos eslavos, que assim se chamam por insondáveis desígnios da etimologia.
São trinta e nove horinhas semanais que cada “tuga” passa a justificar o ordenado, normalmente baixo.
Isto é uma média, e não sabemos bem como é calculada, se pelo método de entrevista: – Quantas horas é que o senhor trabalha por semana – e já se sabe que a com ar contristado e afadigado o inquirido com propensão para a mentirinha e o exagero, responde - Olhe, trabalho que nem um cão, para aí umas dez horas por dia.
É assim que se mede a fibra de um trabalhador em Portugal, pela quantidade de horas que passa no seu posto de trabalho.
Ora, lembro-me de uma expressão do Alçada Baptista que para mim define bem esta calibragem entre a formiga e a cigarra que se debatem dentro de nós; o escritor dizia: “Discurso a preguiça e pratico o trabalho, enquanto outros há que praticam a preguiça e discursam o trabalho.”
Todos conhecemos aquela grande especialidade nacional que é fingir que se está a trabalhar. Basta para isso manter sempre um ar muito atarefado, quase esbaforido, e deixar que todos os colegas da repartição façam as malinhas antes de nós, para finalmente podermos ficar no escritório a ver sites de sexo na Internet até o chefe sair.
– Então Marques, ainda por cá a esta hora – Pergunta orgulhoso o chefe – Claro, chefe, isto é preciso aumentar a produtividade do país, todos temos que dar o nosso contributo. –
Responde o Marques enquanto abre rapidamente a folha de Excel, para tapar algumas mamocas mais salientes ao olhar do chefe.
Isto da produtividade tem muito que se lhe diga, e continua a ser uma espécie de paradigma de gestão balofa - premiar e estimular a quantidade de horas de trabalho, ao invés da qualidade de trabalho. É essa cultura pré-industrial e essa mentalidade manhosa que é preciso mudar. A produtividade nacional só vai aumentar quando se começar a discutir seriamente a organização do trabalho. O mais fácil e cómodo é acreditar naquela lenga-lenga de que os portugueses são preguiçosos, desorganizados, ineficazes, desleixados… Isto é uma espécie de preconceito racial que encarna naquele ódio comum que todos os engravatadinhos liberais nutrem pela figura odiosa do Funcionário Público, como se os vícios burocráticos e ociosos das repartições de finanças públicas não pudessem facilmente encontrar reprodução em qualquer empresa privada.
Ora, ao que conste a organização e planeamento do trabalho não dependem do trabalhador, dependem de quem gere os recursos humanos e aloca força de trabalho a determinadas tarefas.
É a mentalidade empresarial de índole quase medieval que impede desenhar estratégias de produtividade, porque a maior parte dos pseudo-gestores em Portugal se limitam a ocupar-se com o controlo de custos, e com despedimentos, é para isso que servem. A culpa do mau trabalho em Portugal é sempre do trabalhador, raramente do gestor, e essa cultura da irresponsabilidade é a principal responsável pela baixa produtividade do nosso país.
Se o caminho é tentar competir com os povos eslavos no que respeita a desregulação do trabalho ou flexibilização, que é instrumento perigoso nas mãos erradas, porque rapidamente nos leva ao abuso e ao excesso, então esse é um caminho que nos vai levar irremediavelmente para a cauda da Europa, que abanaremos sempre contentes, como o rafeiro à procura da festa.
Na Holanda, que não consta ser país improdutivo, os escritórios estão vazios às 5 horas da tarde, e as pessoas passeiam nos jardins com os filhos, lêem nas esplanadas, e até frequentam “cofee shops”. Em Portugal essa é a hora que para os gestores míopes se começa a trabalhar. Por cá diaboliza-se a preguiça, nos países sérios sabe-se que a preguiça é parte essencial da vida produtiva. Por cá esbanja-se o tempo com ninharias e falsetes, por lá valoriza-se o tempo do trabalho e todas as coisas boas da vida, que normalmente ficam para lá do horário de trabalho.